Capítulo 241 - A promessa

Ao som de uma música sacra que ressoava em uma pequena caixa de som ao fundo, Benedita satisfatoriamente olhava para a mesa rústica de madeira parcialmente posta na varanda de sua casa. A família de Benê, composta de somente três pessoas, utilizava essa mesa apenas em ocasiões especiais, optando por realizar as suas refeições diárias na mesa quadrada de pés de metal e tampo de fórmica que ficava na cozinha. Essa era uma ocasião especial. Tão especialíssima que fora necessário mover a mesa da sala de jantar para a varanda, para garantir um maior conforto de todos os convidados.  

    Isso só foi possível graças às inúmeras orações de Benedita, que pediu, suplicou, prometeu para que a chuva torrencial da noite anterior cessasse e a família pudesse comemorar e se despedir debaixo de sol. Não deu outra. Amanhecera um céu limpo, azul e deslumbrante. Um dia abençoado, pensou Benedita, as fotos vão ficar lindas. Nada poderia estragar esse momento, tão desejado e planejado. Posicionou orgulhosamente a cumbuca com a farofa recém feita na mesa com tampo de fórmica, também movida para a varanda e decorada com uma toalha de motivos religiosos. 

    O portão da garagem encontrava-se aberto, convidativo; logo, Tia Eulália, Tio Alcino e Lara adentraram o quintal sem tocar a campainha.  

— Cadê o nosso padre? — Perguntou Tia Eulália, abraçando Benedita com um largo sorriso no rosto e uma travessa de salpicão nas mãos.  

— Evaristinho está terminando o banho — disse Benedita, abraçando-a efusivamente. Desvencilhou-se do abraço e cumprimentou a não tão sorridente, mas muito tatuada sobrinha. — Cada vez mais curto esse cabelo, heim, Larinha. — Riu forçadamente. Lara revirou os olhos. — O Luigi não vem? 

— Vem, sim, tia. Ele foi buscar a Yasmin em casa e daqui a pouco chega. — Lara colocou o pote de maionese de batata na mesa entre a cumbuca de farofa e a travessa de salpicão, sentou-se à mesa e pegou seu celular.  

    Aos poucos, um farto almoço de despedida tomava forma. Finalmente chegara o momento. Completados os dezoito anos e terminado o ensino médio, Evaristo finalmente iria para o Seminário estudar para se tornar padre. 

—  Oi, Benezinha — Tio Alcino cumprimentou a irmã com um beijo na têmpora e se dirigiu à cozinha, onde guardou o pavê na geladeira e encontrou um Evaristo recém-saído do banho, exalando um perfume amadeirado.  

— Esse perfume seu pode até ter uma fragrância divina, mas não é muito mundano da sua parte, não? — Abraçou carinhosamente o sobrinho, que vestia uma calça social preta e uma camisa branca de botões — Já está se acostumando com o hábito, Tinho? Cadê seu pai?  

— Eu vou ser padre, tio, não vou ser pastor — o sobrinho respondeu, causando um olhar de confusão no seu tio. Apesar de ter sido obrigado a frequentar a igreja por sua mãe, ter feito primeira comunhão e crisma juntamente com Benedita, Tio Alcino nunca fora muito ligado nas tradições religiosas. Entendia a importância da religião para sua família e não considerava o tempo gasto na igreja como um desperdício, uma vez que o usava para planejar as travessuras que faria assim que dali saísse. De vez em quando repetia um “amém” junto com a turma. — Eles fornecem a batina lá no Seminário. — Evaristo encerrou a agonia. — Meu pai está lá dentro escolhendo o sapato, daqui a pouco ele vem. 

— Esse aqui está bom, né? — perguntou o pai, saindo pela porta da cozinha de sapatênis e cumprimentando Tio Alcino. — Aceita uma coca, Al? 

    Ademar queria mesmo era oferecer uma cerveja ao cunhado, ainda mais naquele começo de tarde deliciosamente quente. Sempre fora da farra, mas desde que casara com Benedita, dera uma amansada no consumo de álcool. Bebia cerveja moderadamente e apenas aos finais de semana. Mas não nesse. Nesse ele tinha sido firmemente recomendado por Benedita a não beber.  

— Pode deixar que eu pego, Ademar. 

— Pega uma para mim também, pai! — Gritou Luigi, adentrando pelo portão acompanhado de sua namorada Yasmin.  

— Finalmente! Sentem, sentem. Eu vou buscar o pernil. — Benedita levantou-se rapidamente da mesa, foi à cozinha enquanto todos se cumprimentavam e acomodavam. Voltou trazendo um enorme pernil perfeitamente assado. Posicionou-o no centro da mesa principal, ao alcance de todas as mãos. Mas seus olhos marejados não desgrudavam de seu único filho — Ai, estou tão feliz. Mas já estou com saudades.  

    Seu coração se dividia. Nos primeiros meses, seria um internato rígido, sem poder sair, dar um abraço sequer no filho, então a despedida estava sendo emocionada. Na última semana, Benedita não se cansara de lhe beijar a testa, abraçar e repetir “meu menino está indo ser servo de Deus”. 

    Evaristo reagia tímido e constrangido. Não que não quisesse ser servo de Deus, aliás, dada a sua criação extremamente católica, jamais pensaria nessa alternativa como castigo, mas, sim, bênção. Rezavam antes de todas as refeições, agradecendo o pão de cada dia. Rezavam todas as noites, agradecendo a oportunidade de viver mais aquele dia que lhes fora concedido. Rezavam todas as noites agradecendo por Evaristo poder andar. 

    Ainda de pé, Benedita pegou sua taça cheia de refrigerante e levantou-a em gesto de brinde. 

— É com muita alegria — não conseguiu conter uma fungada de nariz — e um pouco de tristeza, que estamos aqui reunidos hoje para celebrar a ida de nosso Evaristinho para o Seminário. Uma pena que papai e mamãe não estejam mais aqui para ver esse momento. — Uma lágrima timidamente correu por sua face, pingando do seu queixo tremente, enquanto olhava para seu irmão Alcino — Sentiremos saudades, meu filho, mas saiba que essa família sempre apoiará sua jornada e estará de braços abertos para te receber de volta. Que Deus abençoe essa refeição, amém. 

— Amém — repetiram todos em uníssono, já passando e repassando pratos que iam se enchendo de todas as comidas ali dispostas. 

— Evaristo — Yasmin rasgou a sinfonia de talheres e porcelana. —, o que te motivou a ser padre? Você sempre quis ser padre, desde criança? — Um vento gelado levantou as beiradas da toalha da mesa e cortou os ossos de todos os presentes. Alguns guardanapos saíram voando. Benedita acompanhou o voo com olhar de soslaio. 

— Sempre quis. — Respondeu, após terminar de engolir o enorme pedaço de pernil que mastigava. — Quando eu era criança, tive um problema de saúde. Minha mãe fez essa promessa ao Santo Expedito, que se me curasse eu me tornaria padre. Eu me curei no dia seguinte. Foi um milagre. 

    Evaristo mancava. Logo depois que começara a andar, começara também a mancar. Segundo os médicos, era uma sequela da catapora gravíssima que lhe acometera, que migrara para as juntas do fêmur direito. A catapora fora curada, mas Evaristo ainda mancava. E a situação parecia que piorava com o passar do tempo, e não melhorar. Mancava cada vez mais frequentemente, mancava cada vez mais longamente. Após o pedido desesperado de sua mãe a Santo Expedito ter sido atendido, Evaristo nunca mais mancou. Nem mesmo quando topava numa pedra e batia a pontinha do dedinho do pé. 

— Então quem sempre quis que você fosse Padre era a sua mãe e não você. — Yasmin concluiu, com a sereindade de quem conclui que um mais um é dois. O antes límpido céu subitamente se viu coberto de nuvens. O rugido de Zeus foi ouvido ao longe. Mais perto, naquela mesma mesa, o rugido de Benedita tomou o ambiente. 

— Luidi, você, por favor, fale para a sua namorada que não foi a minha vontade coisa nenhuma, foi a vontade de Deus! E que se ela tem algum problema com a vontade de Deus... 

— Você pode você mesma falar para ela que eu não sou menino de recados de ninguém. — Luigi, de pronto, malcriadamente respondeu sua tia.  

— Benê, Luigi, deixem disso, vamos lá. — Tio Alcino tentava colocar panos quentes na situação com a boca cheia de pernil e de farofa. Empurrava tudo para baixo com um copo de refrigerante gelado. — Benê, a Yasmin só está querendo entender melhor a situação. Aliás, é uma situação bastante diferente mesmo. Não é, Yasmin? — suplicou com o olhar à sua nora, que assentiu com a cabeça. Evaristo tentou tomar as rédeas da situação. 

— Não foi minha mãe, Yasmin, fui eu que escolhi ser padre. Sabendo do milagre operado em mim, eu escolhi agradecer servindo a Deus. — apesar do vento gelado que agora soprava naquele quintal, Evaristo suava profusamente. 

— Quantos anos você tinha quando o... — Yasmin fez uma pausa sarcástica — ...milagre aconteceu? 

— Eu era muito pequeno. Eu... — Evaristo secou a testa e o buço com o guardanapo de papel. —  Não lembro quantos anos eu tinha.  

— Três! — Gritou a tia Eulália lá do fundo. 

— Três anos? Então não foi você que escolheu, Evaristo. Sinto muito, escolheram essa vida para você quando prometeram em seu nome. Você só se acostumou com essa ideia ao longo dos anos. — Yasmin instaurou de vez o climão no almoço. O céu, agora já totalmente coberto de nuvens, rugia como o estômago sem café da manhã de um trabalhador braçal a uma da tarde.   

    Evaristo não retrucou. No céu, um relâmpago surgiu como um flash nos olhos de todos. Em evaristo, essa luz o transportou para tudo que deixara de viver. Nunca tinha beijado meninas, muito menos meninos, porque não queria ter o gostinho do doce na boca para ser retirado depois. Não fazia sentido experimentar. “A gente não sente falta do que nunca teve”, ele tentava se convencer, mesmo sentindo muita falta de viver todas as emoções e dramas da juventude. Todos ao seu redor já sabiam, nenhuma menina ousava se aproximar dele em todos esses anos, apesar de por vezes receber alguns olhares lascivos de meninas que vieram de fora desavisadas, ou então daquelas que acreditavam ter poder para ganhar a briga contra Deus. Será que ser padre era mesmo um sonho seu ou será que esse sonho fora nele embutido? Será que Yasmin estava certa? Se ela estava certa, se essa situação era tão óbvia assim, por que ninguém da família nunca o avisara antes?  

    Os primeiros pingos de um promissor temporal atingiram o piso de concreto fissurado do quintal. Tio Alcino e Ademar prontamente se organizaram para levar a comida para a cozinha, impedindo-a de ser transformada em um ensopado. Aos poucos, todos os seguiram. Levaram, inclusive, as mesas e cadeiras para dentro, transferindo totalmente o almoço para a parte interna da casa. Restaram sentados em seus lugares Benedita, ainda esbravejando, e Evaristo, absorto numa crise existencial. Ambos já completamente molhados pela chuva torrencial de verão que caía em pleno outono. 

— Essa mania de enfiar religião em tudo sempre dá problema na nossa família  —  Lara, segurando apenas o prato numa mão e o garfo em outra, voltara da cozinha à varanda para atiçar ainda mais Benedita. Trouxera consigo Yasmin, a quem se dirigia e que entupia a boca de arroz. — E esses problemas sempre estouram do lado dos filhos, viu, Yasmin. Eu mesma passei anos da minha infância sem poder cortar meu cabelo por conta de uma promessa da minha mãe. 

— Mas você amava seu cabelo — tia Eulália, agora sentada em uma cadeira bem encostada na parede externa da casa, recebendo pingos aleatórios de chuva e com os pés lavados pela ira de Zeus em suas havaianas, retrucou com indiferença. — Eu fazia diversos penteados e tranças em você para ir para o colégio. Você fazia o maior sucesso no colégio. 

— Eu detestava, mãe, eu era extremamente zuada no colégio por conta desse cabelo. Grudavam chiclete, puxavam, me chamavam de Irmã Zuleide. Sem contar o trabalho que dava pra lavar, pentear. Não é à toa que hoje eu só uso cabelo pixie. — Lara, não tão indiferente, contou seu lado da história. 

— Achei que o cabelo pixie fosse por você ser lésbica — Yasmin respondeu perguntando. 

— Sou, mas não é relacionado. Aquele cabelão foi um inferno na minha vida! — Benê arregalou os olhos. A palavra “inferno” tinha um peso maior naquela família. 

— Bom, isso aí foi ideia da Tia Benê. Se resolva com ela. — Lara fuzilou sua tia com o olhar. Uma discussão acalorada se iniciou. Dedos foram sendo apontados e gargantas arranhadas por traumas, rancores e certezas, misturados e confundidos com os assobios da ventania. 

    Quando um segundo raio iluminou aquele dia agora escuro, Evaristo finalmente saiu do transe. Levantou-se da sua cadeira, arrancou fora a calça, a camisa social e os sapatos, agora já completamente encharcados. Se esgueirou entre seus familiares de ânimos exaltados, conectou o celular na caixa de som e trocou a música sacra pela playlist Pagodeira. Um clássico de Péricles tomou o ambiente, se sobrepondo à intesa gritaria. Evaristo entrou em seu segundo transe. No meio do quintal, banhado pelas lágrimas de Deus e de olhos fechados, cantava com as mãos no coração. 

    Em poucos minutos, um motoboy, ainda de capacete e todo vestido de roupa impermeável, adentrou a confusão.   

— Entrega de quatro fardos de cerveja gelada, é aqui? — Evaristo saiu do seu segundo transe e respondeu afirmamente, começando a retirar os engradados do carrinho de apoio da moto e levar para a cozinha.  

— Agora, sim, isso é uma festa! — Ademar retirou os sapatos e fez o sacrifício de se molhar na chuva para auxiliar seu filho. Tio Alcino cometeu o mesmo martírio, tudo em prol da cervejinha gelada.  

— Era o que me faltava! Cerveja? — Benê ainda imóvel na cadeira, recusava-se a acreditar no que o seu sacro almoço tinha se tornado. Sua cabeça espiralava entre tentar impedir que a situação se agravasse e buscar rapidamente uma versão mais palatável de todas essa história para contar na Paróquia. 

    Os copos de refrigerante rapidamente foram sendo substituídos por copos de cerveja. Na caixa de som, um Thiaguinho tocava “Hoje eu acordei com o pé direito...”. Lara puxou Yasmin para dançar na chuva. Seguindo a deixa da irmã, Luigi puxou seus pais Eulália e Alcindo. Evaristo com um copo de cerveja em cada mão, levantava os braços em direção aos céus. Ademar pegou um dos copos de cerveja da mão de seu filho e o abraçou. No refrão, ensopados, a família cantava a todos pulmões em egrégora “é, eu vou seguindo de cabeça em pé. Eu perco tudo mas não perco a fé. Eu tô em busca da minha sorte, eu tô no corre, sabe como é...”. .  

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